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O animal e a linguagem

Aristóteles definiu o ser humano como um animal racional e dotado de linguagem. A questão de ser racional já foi amplamente explorada e mesmo utilizada para colocar a nossa espécie como superior ao resto dos animais, mas o segundo aspecto da definição aristotélica ainda é pouco considerado e não goza do mesmo grau de importância atribuído ao primeiro. Para o filósofo, a linguagem permite aos homens deliberar sobre o certo e o errado, o justo e o injusto. Desta forma, a linguagem permitiria aos seres racionais trocarem percepções entre si e construírem juntos um mundo comum que pudesse trazer o convívio harmônico e, com isso, a sociedade ideal.
Infelizmente esse fator tão preponderante no ser humano não foi tratado com toda a seriedade com que se tratou a racionalidade durante todo o nosso progresso histórico. Se a racionalidade, aliada à técnica, construiu maravilhas e mesmo aberrações que ao mesmo tempo nos enchem de admiração e temor, com a linguagem parece que ainda estamos engatinhando. A utilização da comunicação como meio de deliberar de maneira dialogal, tolerante e respeitosa a respeito dos assuntos humanos ainda é uma tarefa que está longe de ser atingida com qualidade.
O que percebemos nos debates e discussões mais se assemelha a uma disputa, uma espécie de “cabo de guerra” lingüístico-gramatical do que propriamente uma construção saudável de consensos e soluções para os males que afetam a convivência. Desde os debates políticos e éticos, que interferem nas relações internacionais, até as relações entre casais, pais e filhos ou mesmo as mais simples situações cotidianas, o que se nota é que a má qualidade do diálogo e a falta de habilidade nesse quesito nos colocam sempre em vias de causar mais confusão do que resolver os problemas anteriormente postos.
Na maioria das vezes, a palavra não é usada como um meio de estabelecer alianças de forma cooperativa e elos com os nossos semelhantes, mas sim usada como arma para atingir pontos vulneráveis do nosso interlocutor, tido como adversário. O homem civilizado despreza o tacape e a lança, e agora agride e destrói com as palavras, e com isso se imagina superior aos seus antecessores. Só não percebe que está utilizando uma ferramenta altamente elaborada, porém com a intenção de causar o mesmo estrago de antes. É como ter uma máquina de última geração sendo operada por um bando de chimpanzés. “Anel de ouro em focinho de porco”, parafraseando o trecho bíblico.
Mesmo as chamadas DRs entre casais, que deveriam servir para acertar as diferenças e realinhar os objetivos comuns dessas duas pessoas, teoricamente pouca gente e mais simples de se chegar a um acordo, acabam por se tornarem um festival de acusações onde cada um só enfatiza o que está perdendo ou o quanto está cedendo, o quanto está tendo de prejuízo dentro do acordo firmado. O que era para estabelecer acordos e redirecionar metas acaba por solapar ainda mais a linha de comunicação que ali existia. Assim como praticamente em tudo o que fazemos, não sabemos desvincular também a comunicação das relações de poder com as quais lidamos com as coisas, a natureza, as outras espécies...

Resumindo: não entendemos ainda a verdadeira potencialidade da comunicação, no pouco que a entendemos ainda não somos capazes de estabelecer acordos nem entre casais ou pequenos grupos e somos chamados a enfrentar a tarefa de pensar em escala global. Precisamos tratar da nossa habilidade de nos comunicarmos com a mesma seriedade e ênfase com a qual desde o Iluminismo lidamos com a nossa racionalidade. Talvez assim consigamos a tempo uma maneira de nos entendermos e traçar rumos comuns a um planeta que não vai suportar muito tempo a nossa inabilidade de construirmos soluções conjuntas para o problema que criamos e que ao mesmo tempo não podemos resolver sozinhos e nem aprendemos a ouvir o outro. Revisitar essa parte da concepção aristotélica se tornou agora não mais um simples passeio filosófico, e sim questão de bom direcionamento das relações humanas rumo a um convívio saudável e mesmo de sobrevivência humana no planeta.

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