Não nos viciamos apenas
em drogas, jogos ou pessoas. Viciamos também em sensações. Principalmente em
sensações. As sensações nos remetem a um sentimento de plenitude e satisfação,
ou pelo menos afastam o mal estar, e isso por si só já nos causa um certo
anestesiamento, um alívio para o desconforto de viver.
Vício é tudo aquilo que
não conseguimos deixar de fazer. O grande triunfo do vício é nos tirar a
autonomia, a nossa capacidade de agir de acordo com nossas próprias escolhas,
conscientemente. Para além dos diversos males que cada vício pode causar, este
é o primeiro e o principal deles. Ele tira a nossa dignidade, nossa capacidade
de agir conforme aquilo que conscientemente definimos para nós. Faz com que nos
tornemos autômatos, agentes que só se direcionam com o intuito de sanar aquilo
que o vício nos impõe. Vai minando pouco a pouco a nossa capacidade de decidir,
e nos tornamos subalternos, incapazes de ter vontade própria.
A busca daquela sensação
primeira, aquela que nos tocou profundamente e nos elevou a uma outra esfera
existencial, move toda a nossa ação e nos faz de todas as formas tentar resgatá-la.
Aquele cheiro, o gosto, as imagens, todas as impressões que nos marcaram e,
mesmo que por instantes, nos fizeram esquecer qualquer tipo de amargura que
pudéssemos ter tido experimentado na vida clamam por serem trazidos a tona
novamente. Queremos permanecer nesse estado paradisíaco para sempre. Não
queremos o mundo real, queremos o mundo perfeito onde só aquela sensação
existe, e para adentrar esse mundo acabamos por abrir mão de tudo o que nos
rodeia, mesmo aquilo que algum dia pode nos ter sido tão precioso como amigos,
família, trabalho, dignidade etc.
Tentamos ignorar que todo
prazer é efêmero, e que a sensação uma vez experimentada não pode ser repetida
da mesma forma uma segunda vez. A cada nova experiência o sabor se esvai e se
torna menos intenso, e com isso nossa insatisfação aumenta mais e procuramos de
alguma forma, seja pela repetição do ritual ou pela procura de substitutos algo
que nos traga de volta aquele paraíso perdido e cada vez mais distante. Inútil.
A experiência vivida é como a batida de um martelo cujo som se propaga cada vez
mais para longe e não realiza nenhum retorno a ponto de partida a não ser em
forma de eco, uma versão bem inferior do evento original.
Escapar do vício demanda
uma grande dose de desapego. Implica compreender a natureza fugaz dos eventos e
aprender a conviver com isso, ainda que a sensação experimentada seja por
demais intensa e significativa. Na falta dessa força interior alguns subterfúgios
são apontados como pontos de apoio que auxiliaram a muitos, como por exemplo a
religião ou o apego aos familiares, amigos, alguém ou algo pelo qual se
conseguiu desapegar do vício em função de algum tipo de bem maior. Mas para
aqueles que não possuem esse vínculo tão forte ou que perderam essa capacidade
não resta muito o que fazer. Se a razão e o vínculo são os dois pontos
principais para a superação desse mal, percebemos que sua atuação visa enfraquecer
justamente esses dois pilares da resistência do hospedeiro.
E como não sabemos qual é
o nosso ponto fraco a princípio, qual a nossa propensão viciante, somos
obrigados a tentar nos desvencilhar desse inimigo só depois que ele capta o
nosso ponto fraco e nos ataca através dele. Na impossibilidade de viver uma
existência morna e sem sobressaltos, nos atrevemos sempre para sentir a vida
mais pulsante em nossas veias, e nessa hora iniciamos uma estimulante e ao
mesmo tempo perigosa roleta russa com o vício. Onde, como e quando ele irá nos procurar
e tentar se apossar de nós não podemos prever, nem sabemos se seremos fortes o
suficiente para encará-lo de frente e vencê-lo. O que podemos fazer, mesmo sem
saber se será um esforço que trará um bom retorno é tentar nos preparar para
enfrentar todas essas armadilhas citadas e deixar nosso senso crítico ligado
para identificar os sintomas quando eles começarem a se manifestar para que
possamos combatê-los. Ou então torcer para que nossa força de vontade possa ser
grande o suficiente para que consigamos procurar algum tipo de ajuda ou refúgio,
quando formos severamente atacados, antes que ele nos sugue toda a capacidade
de nos autodirecionar.
Preparamos nossa
estratégia e nos sentamos à mesa, mas é o destino quem embaralha e distribui as
cartas. Só nos resta desejar boa sorte e bons palpites para sairmos do jogo
vitoriosos.
Muito bom. Perdemos nossa autonomia quando nos viciamos em tudo, deixamos de pensar em nós mesmos. Nos tornamos escravos. Podemos ser livres, mas nos prendemos a algo que nos suga e mais do que nos privar da saúde, nos priva de vivermos nossa liberdade.
ResponderExcluirValeu, Andrezinho, obrigado pelos comentários!
ExcluirMuito interessante e verdadeiro.
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirÓtimo texto. Impossível não interromper a leitura tentando identificar os meus próprios vícios e em qual situação me encontro em relação a eles.
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