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Tédio versus Admiração

A raiz do tédio é o enfado. Começa a entediar-se aquele para quem a vida se tornou óbvia, sem brilho e nem mistérios. Num mundo com tantas explicações e facilidades isso parece cada vez mais fácil de acontecer, as pessoas perdem o interesse por tudo com grande rapidez. A vida, as coisas, os relacionamentos, tudo se assemelha a um chiclete que em pouco tempo perde o açúcar e nos deixa com a sensação de estar mastigando uma borracha sem gosto para a qual logo procuramos um lugar para descartar.
A vida cada vez mais restrita e mesquinha favorece demais este sentimento tão prejudicial ao nosso desenvolvimento pessoal, social e mesmo cognitivo. Pessoal porque ao reduzir o mundo a um conjunto fechado de explicações e possibilidades não nos esforçamos para tornar a vida algo mais do que aquilo que ela nos apresenta, a transcender o que nos é dado e permanecemos na mesmice. Depois culpamos a existência pela nossa falta de iniciativa. Social porque impede que invistamos nas relações de maneira a construir algo melhor e duradouro, que enfrentemos as adversidades da convivência rumo a patamares mais elevados de convivência. Permanecemos egocêntricos e infantis, centrados somente em nosso mundinho pessoal, encolhendo-nos para evitarmos ocupar muito espaço e com isso favorecer com que nos pisem, da mesma forma como fazem os vermes que rastejam pelo chão. E cognitivo porque para aquele que o mundo deixou de ser misterioso não existem mais novidades, não existem dúvidas, não existe admiração. Quem não se admira não tem curiosidade. Quem não tem curiosidade não procura saber. Quem não procura saber não vive, só ocupa espaço e vegeta.
O efeito mais maléfico do tédio é o de justamente nos fazer perder a admiração pelas coisas, pelas pessoas, pela dinâmica das relações sociais em toda a sua amplitude. Entediar-se é rejeitar todo o esforço humano para construir sentido e beleza a tudo o que nos rodeia. É dar as costas a todo o legado construído pela humanidade através dos milênios e furtar-se à tarefa de dar continuidade a ela.
Quem sente tédio fechou os olhos para o mundo e para si mesmo. Um universo fora de nós e outro dentro, ainda pouco explorados e tão cheios de incógnitas a serem encaradas, sistematizadas, apreciadas... Tudo isso parece não ser mais do que a visão de uma parede branca para quem não se permite olhar com a devida atenção.
Quem perdeu o brilho do olhar se assemelha a um objeto antigo que vai ficando opaco e oxidado com o tempo. Quanto mais essa crosta vai se encalacrando em sua superfície, menos vivo o objeto parece. Para nós que tantas vezes nos fazemos realmente de objetos e também damos aos outros esse tipo de tratamento pode até mesmo parecer comum que muitos tenhamos esse fim, o de nos tornarmos embaçados e apagados por toda essas camadas que nos engessam.
Mas se é verdade que estamos no mundo para mais do que simplesmente ocuparmos espaço e perpetuar a espécie precisamos constantemente nos renovarmos e adquirirmos meios para sempre nos polirmos desta fina névoa que aos poucos sempre cisma em voltar a cair sobre nossas superfícies, até ir engrossando de tal modo a nos fazer paralisar diante da existência. E o primeiro cuidado que devemos ter é com os olhos. Quem tem a admiração nos olhos não envelhece, não se engessa, não perde o encanto para o eterno devir que o cerca.

Porém, para que essa admiração nunca se perca do nosso olhar não basta simplesmente cobrir os olhos. Há principalmente que se educar o olhar. A curiosidade sempre pronta para o espanto é o melhor colírio de todos, favorece a visão e protege contra a letargia do olhar.

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