Pular para o conteúdo principal

Ser e Ter, a peça que faltava

Creio que a maioria de nós, se não todos, já ouvimos aqueles famosos discursos por vezes bastante moralistas sobre a oposição entre o Ser e o Ter. Este último sempre demonizado e tido como a principal causa da grande decadência do mundo contemporâneo. Não podemos negar que realmente o fato de alguém se sentir algo no mundo de hoje está intimamente ligado ao quanto e a o que esse alguém possui materialmente, seja essa posse material o dinheiro, carro, casa ou um belo corpo.
Contudo, se observarmos mais de perto, poderemos perceber que esse Ter não parece ser um fim em si, mas apenas um meio para atingir algo mais profundo e almejado hoje em dia: o Parecer. O Ter não garante o sucesso ou o bem-estar que todos procuram, é preciso Parecer ser alguém de sucesso, poderoso ou o que quer que seja. Vivemos num mundo onde a imagem é muito valorizada, se você tem muito dinheiro, mas não tem belas posses que transmitam aos outros a impressão de que você o tem, ninguém irá notá-lo ou tratá-lo com a devida importância. É necessário tomar atitudes condizentes com a sua situação financeira, para que o resto da sociedade lhe reconheça. Imagine um rico mal vestido, com um carro velho ou todo tipo de estereótipos que caracterizam alguém pobre, dificilmente será reconhecido como tal. É preciso comunicar com os vários mecanismos oferecidos pela sociedade o que você é e como quer ser visto pelos outros ao seu redor.
E não é só no âmbito financeiro que notamos esse anseio pelo Parecer, no nosso dia-a-dia podemos perceber outros diversos exemplos de como o Ter é simplesmente um trampolim para poder Parecer. O funcionário não quer subir de cargo só pra ter mais dinheiro e comprar mais coisas, ele quer Parecer alguém bem sucedido, ser invejado, ser notado, ser cobiçado pelos outros atores sociais. As mulheres que arriscam suas vidas nas salas de cirurgia para fazer lipoaspiração não estão pensando só na beleza física, em Ter um corpo definido, mas em todos os outros bens que isso proporciona e no status que a sociedade confere àqueles que se adequam a esse padrão. Ou seja, novamente estão atrás de uma imagem.
Não importa se você está triste ou desanimado, o importante é Parecer estar bem, isso já foi percebido pela indústria dos livros de auto-ajuda e pelos fabricantes de anti-depressivos, para que você possa resolver os seus problemas por conta própria, sem expor aos outros sua frustração consigo mesmo (auto-ajuda), e fique sorrindo para as paredes mesmo que a sua mamãezinha tenha sido atropelada por um caminhão (auto-medicação ou mesmo medicação controlada, já que muitos médicos já estão receitando esses medicamentos a rodo para não ter que se envolver com o problema de ninguém).
A dimensão trágica da vida não pode ser evitada, por mais que se tente, mas já dá para mascará-la muito bem, e a cada dia com a supervalorização do bem estar e do sucesso pela sociedade contemporânea podemos vislumbrar novas formas de alheamento da realidade em função de uma paz de espírito e de uma auto-imagem ideal, negando a vida como um todo em nome de uma corrida desesperada para parecer que se está livre das intempéries da existência.
Para concluir, creio que podemos sintetizar o caso da seguinte forma: na angústia de não saber Ser ou por medo de não Ser o suficiente, recorre-se ao Ter para Parecer que se é, pois o Parecer é mais volúvel e pode ser incrementado por meio do Ter para que se alcance formas mais elaboradas de parecer que se é quando aquilo que se parece Ser se mostra insuficiente ou obsoleto.

Comentários

  1. Eu concordo, hoje na sociedade moderna muitos se preocupam com as aparências, o materialismo e o consumismo cresce e pessoas são valorizadas pelo que possuem ou parecem possuir.
    Deixa-se de lado o que somos como pessoa, as nossas virtudes e passa-se a olhar a qual classe social pertencemos.
    Cabe a cada um de nós pensar: estamos nos preocupando com as opiniões alheias? Como o mundo nos vê? Se a resposta for sim está nos faltando a humildade.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Por que o diferente incomoda?

Vivemos em um mundo globalizado, nitidamente multicultural, multifacetado, onde diversas perspectivas e visões de mundo interagem o tempo todo. Convivemos o tempo todo com pessoas que possuem gostos, preferências, ideias, visões de mundo muito diferentes das nossas e muitas vezes até batemos no peito para enfatizar a “beleza” dessa diferença entre as pessoas. Mas será que esse discurso de exaltação da diferença é mesmo genuíno? A diferença é para nós o tempero que deixa a vida mais saborosa ou aquilo que justamente amarga as nossas bocas e nos tira o bom humor? Quando se pensa nas intermináveis guerras de torcida, acusações entre as igrejas e seus membros sobre qual seria a “mais verdadeira”, a que não “serve ao inimigo”, e outras alegações afins, nos partidos políticos que não se entendem e elevam suas divergências para além do bem da população pela qual deveriam zelar, além de outros tipos de preconceitos quanto ao gosto musical, estilo de se vestir, classe social, cor de pele, orie...

Refletir, tarefa difícil

Nossos pensamentos nos vêm à mente mesmo sem nos darmos conta deles. Por isso, quando se trata de pensar de maneira crítica sobre as coisas, principalmente nos dias tão conturbados em que vivemos, achamos que rapidamente seremos capazes de encontrar uma saída fácil e rápida para aquilo que nos aflige. Engano. A reflexão exige um desdobramento que nem todos se encorajam realmente a fazer. Questionar é enfrentar problemas, desenterrar fantasmas e encarar nossas próprias limitações. O homem não reflete por prazer e sim para solucionar questões que o afligem, por isso a atitude reflexiva apesar de parecer algo simples, nos causa tanto desconforto e a maioria prefere não fazê-la constantemente. Alguns a evitam a qualquer custo. Quem se dedica a essa atividade seja por hobby ou profissão é considerado um sobre-humano ou alguém com algum tipo de problema. Desta forma, rapidamente vemos que as pessoas tendem a aceitar soluções “mágicas” oferecidas por qualquer oportunista em vez de assum...

Vivendo de passado

É interessante perceber como boa parte das pessoas ao sentirem-se oprimidas ou receosas quanto ao presente ou ao futuro sempre acabam por se refugiar no passado. O futuro é incerto, o presente muitas vezes é desfavorável, mas o passado já aconteceu, não pode mais voltar, e quando ele não nos traz boas recordações pode facilmente ser moldado consciente ou inconscientemente para se adequar às nossas expectativas e nos parecer melhor do que foi realmente. Refugiar-se no passado oferece segurança e consolo para aqueles que têm medo de encarar a vida e seus percalços, pois no passado encontram uma zona de conforto, onde os acontecimentos desagradáveis podem ser repensados e melhorados de forma a parecer que não foram tão ruins assim, que serviram de aprendizado, que de alguma forma se justificam e que o passado foi bem melhor do que os dias atuais ou mais sólido do que as perspectivas voláteis do futuro. Com base nessa forma de pensar passam a exaltar os antigos amores, o comportamento do...