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Os abutres e o câncer


Os abutres estão sempre prontos esperando o animal agonizante não mais oferecer condições de reação para que possam começar a devorá-lo. Isto é válido na natureza como também nas questões políticas e sociais. A diferença é que na sociedade existem muitas espécies de abutres, cada qual com o seu modo de agir e suas táticas particulares para se aproveitar do animal moribundo. Todo momento de crise evidencia a ascensão de um ou outro grupo, mais simpático a cada tipo de desgraça ou às suas causas, oferecendo alguma solução milagrosa para os problemas em troca de apoio da população.
Para arrebanhar o apoio popular é necessário criar um inimigo comum, ou pelo menos apontar um responsável pela desgraça que ali se instalou. Assim como na velha história do “bode expiatório”, na antiguidade, oferece-se a saída fácil de que aquele ser específico, ao ser imolado, carregará consigo todos os males e devolverá a paz e a tranquilidade ao grupo. Rodando o mundo vemos os imigrantes, o grupo X ou Y, a religião tal ou a falta de religião, o grupo que manifesta outros gostos ou sexualidade diferente da maioria sendo apontados como a causa das desgraças vivenciadas pela maioria.
Arrebanhado o apoio necessário, que não é tão difícil de conseguir já que todos buscam uma solução rápida para o seus problemas, esses grupos simpatizantes de todo tipo de autoritarismo, seja ele militar, religioso ou de qualquer outra matriz, passam a agir supostamente em nome daqueles que os apoiam, mas na verdade só lhes interessam os seus próprios objetivos, sua própria visão de mundo, em detrimento de qualquer outra maneira de vez o mundo que não a sua. E mesmo aqueles que os apoiaram a princípio podem vir a sofrer as consequências no futuro caso não se adequem ao seu modo de gerenciar o Estado. Isso é evidente em diversas situações e momentos históricos.
As pessoas abrem mão de sua liberdade e capacidade de escolha com muita facilidade. A covardia frente aos desafios faz com que a maioria delegue a terceiros a “parte pesada” do processo. Tomar para si as rédeas da situação, do gerenciamento conjunto das crises que de tempos em tempos enfrentamos assusta muita gente e as fazem procurar saídas mais cômodas, desde que quem assuma essa incumbência se proponha a conduzir o processo de acordo com as preferências dos representados. Desta forma, a democracia é a primeira a ser descartada, uma vez que facilmente se abre mão dela desde que o lado contrário, o opositor, seja suprimido de alguma maneira. As pessoas não gostam de negociar, preferem ganhar, mesmo que por subterfúgios.
Assim sendo, não é incomum perceber como as pessoas comuns aderem a qualquer discurso totalitário, desde que os objetivos convirjam com os seus. A possibilidade de sufocar o discurso contrário nos fascina, nos faz imaginar um mundo totalmente do nosso jeito, onde tudo é ordenado e funciona ao nosso modo. Um verdadeiro paraíso na Terra.
No entanto, como delegamos a um outro que o realize por nós, não temos a certeza de que também venhamos a ser vistos como opositores num futuro próximo. Também essa simpatia pelo sufocamento do outro e sua visão de mundo nos mostra o quanto somos adeptos da truculência e da coação, se esta nos beneficia de alguma maneira.
Para vivermos numa nação realmente democrática não podemos destruir todo tipo de pensamento contrário para deliberar apenas com quem pensa da mesma maneira que nós. Precisamos nos imbuir realmente do espírito do diálogo, da mobilização conjunta e madura, sem disputas que busquem a anulação do outro. Carecemos de entender que política diz respeito àquilo que se refere ao que é comum a todos, que tenha por objetivo a obtenção do bem comum, e não só o do grupo ao qual se faz parte. E para isso precisamos aprender a conviver com as diferenças e não aniquilá-las. Caso contrário, a semente da ditadura e do totalitarismo sempre encontrará solo fértil para se desenvolver e frutificar, como um câncer que se alastra e qualquer resquício pode dar início a uma nova infestação, contaminando todo o organismo social.

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