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O amor que mata

Em tempos em que a todo momento aparecem novas notícias de pessoas que ferem e muitas vezes acabam por matar seus ex-companheiros, principalmente homens que matam suas ex-mulheres e namoradas, alguns questionamentos começam a martelar em nossas mentes: Esse comportamento pode ser considerado mesmo uma consequência do amor? O que leva alguém a cometer um ato deste porte simplesmente por uma ruptura num laço afetivo? A quebra de um vínculo afetivo justifica atitudes deste tipo? O que estaria por trás deste tipo de atitude?
Em primeiro lugar, percebemos claramente que existe em nossa sociedade uma ideia distorcida de que o amor é ou doação total e irrestrita, ou achar alguém que te complete e te traga tudo aquilo que falte na sua vida. Aí mora a raiz de todos os problemas, pois quando se considera que amar é se doar totalmente e sem restrições, acaba-se por ceder tudo ao outro e desculpar todo o tipo de deslize e agressão por ele realizada. Assim como a visão de que a pessoa amada é aquela peça única que te completa em todas as suas lacunas, criando-se um vício no qual a falta desta pessoa pode gerar todo tipo de reação típica de um viciado: síndrome da abstinência, agressividade, depressão, a suspensão do senso de moralidade e discernimento do certo e errado...
E dentro desta perspectiva, o amor que começou como uma relação de amizade, companheirismo, doação mútua, aconchego etc. acaba por transformar-se em um amor que mata. E mata não só no aspecto físico, que também vemos tanto nos noticiários, mas principalmente e, primeiramente, mata os sonhos, a auto-estima, o bom-humor, os bons sentimentos e todo tipo de beleza que uma pessoa carrega dentro de si. Por confiar que o amor é doação, essas pessoas entregam tudo o que possuem e tudo o que são na esperança romântica de um final feliz, num dia em que o outro retribuirá todo o amor e dedicação que elas investem de bom grado. Porém, o que se percebe, tristemente, é que quanto maior é a doação, menor é a retribuição, e quando essas pessoas caem em si, se é que caem, concluem que amaram sozinhas e investiram todas as suas fichas num jogo de azar onde apenas perderam seu tempo, juventude, às vezes dinheiro, carreira, estudos, tudo para agradar o seu amor, demonstrar seus sentimentos, acalmar e evitar possíveis rompantes de ciúmes e todo tipo de consequência que pudesse vir a atrapalhar a relação para no fim receber como prêmio um ou mais pares de chifres, um título de vagabunda ou fracassado e toda espécie de ingratidão.
Nos casos em que se tem o outro como o complemento indispensável para uma vida feliz e realizada, o fim da relação ou qualquer coisa que possa representar algum tipo de ruptura naquela segurança tão desejada é rechaçada com um acesso de ciúmes que se exterioriza por meio de indiretas, acusações muitas vezes infundadas, discussões, terminando por vezes em agressão física e até em assassinato. E o pior é que a nossa sociedade vê isso como algo justificável. Argumentos como “Fulano fez isso porque amava demais” são extremamente comuns e este tipo de atitude é até considerada normal ou bonita, pois denota que a pessoa gosta tanto que quer defender esse amor a todo custo. O que não se dá conta até agora é que agressão não é demonstração de carinho, é violência. Matar alguém não é amor, é egoísmo. Proibir alguém de ter amigos, se relacionar com a própria família, estudar e tudo o mais não é gostar, é ser possessivo. Pessoas assim não precisam de carinho, amor, compreensão, o que elas precisam é de tratamento psiquiátrico, são mentalmente perturbadas, não pessoas amorosas.
Portanto, se você preza o amor, ame a si mesmo em primeiro lugar. E antes de tentar encontrar alguém que te complete, seja capaz de se dar o que você gostaria que outro viesse te dar. E se ainda assim tiver vontade de compartilhar a sua vida com alguém, que o faça para acrescentar coisas boas para a sua vida e a da pessoa e não para escravizar ou se tornar escravo do outro. Também não tenha medo de dizer um sonoro “não” para tudo aquilo que te incomoda na relação, levando em conta aquilo que o outro quer e observando sinceramente se os objetivos de um e de outro realmente coincidem. Se sim, ótimo, se não, o melhor é cada um seguir o seu caminho em vez de querer fazer do outro aquilo que ele não é, matando-o por dentro ou submetendo-se a ele deixando que ele te mate.

Comentários

  1. Muito bom esse texto hein. O ser humano as vezes ultrapassa todos os limites, alegando ser por amor ainda, o amor nada diminui, só acrescenta. Beijos

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