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O orgulho da burrice


A maioria da população possui um conhecimento limitado a respeito das coisas. Qualquer um concorda com isso. No entanto, ninguém concorda que esteja inserido dentro desta maioria. Podemos comparar esta situação com na leitura do Mito da Caverna, de Platão, que sempre lemos na crença de que somos como o prisioneiro liberto e esclarecido, e nunca como aquele que permanece na escuridão da ignorância, rejeitando quem verdadeiramente vem nos oferecer um caminho para sair da caverna das ilusões.
Descartes, sabiamente disse que “o bom senso é a coisa mais bem distribuída de todas. Todos acham que a possuem em quantidade suficiente e ninguém acha que precisa obter mais”. Certamente ele deve ter dito isto com a intenção de debochar da nossa suposição de estarmos certos em tudo o que fazemos, pois dificilmente alguém acha que precise ter mais noção das coisas do que já tem. Todos querem mais dinheiro, conhecimento, reconhecimento, tudo. Menos ter mais bom senso. Este nos parece estar sempre no nível adequado. Tanto que nos permite lançar julgamentos dos mais variados a respeito da vida alheia, política, ética, religião e muitas outras coisas.
Como se isso não bastasse, ultimamente o que se percebe em alto grau é mesmo uma certa desconfiança e até hostilidade com quem domina um conhecimento acadêmico mais avançado. Sob pretextos como “amadores fizeram a arca, especialistas construíram o Titanic” e outras bobagens do tipo, levanta-se um verdadeiro orgulho da mediocridade e da falta de profundidade no conhecimento de qualquer espécie. O autodidatismo impera alavancado pelo culto aos youtubers de vídeos de cinco minutos, onde as pessoas acreditam que após algumas sessões rápidas já estão com bagagem suficiente para enfrentar qualquer acadêmico. Aliado a isto, temos também o culto aos memes, que funcionam como argumentos autoexplicativos e suficientes para representar qualquer ideia sem a necessidade de algum tipo de elaboração mais profunda.
A academia é vista como um ambiente onde o conhecimento é utilizado como meio de ocultação da verdade, onde os malabarismos conceituais atuam como um véu na mão dos impostores com altas graduações, sempre dispostos a confundir a mente dos menos afeiçoados a essa linguagem hermética do conhecimento aprofundado com o objetivo de afastá-los do verdadeiro conhecimento sobre as coisas. Senso comum acabou virando sinônimo de conhecimento seguro e todo o aparato conceitual que as ciências construíram durante o decorrer dos séculos é encarado com desconfiança e repulsa, assim como os seus defensores e representantes.
Nesta seara de aberrações, brotam afirmações bizarras como a de que a Terra é plana, as vacinas matam, o homem nunca pisou na Lua e outras baboseiras. E na onda das explicações fáceis para os incautos que não se familiarizam muito com a profundidade das teorias científicas, arrebanham muitos seguidores e ampliam sua influência na sociedade.
Tudo isso se mostra como um claro reflexo da nossa incapacidade de educar adequadamente a população e do descaso com o conhecimento formal que é um adas principais marcas do ser humano no planeta. Enquanto o valor do saber for um consenso, mas não uma prática ostensiva em qualquer sociedade, a ignorância travestida de certeza daqueles que têm preguiça ou incapacidade de pensar continuará a achar solo fértil e mentes disponíveis em toda parte. E com isso todo o rigor lógico de qualquer ciência será obrigado a disputar espaço e passar pela vexação de ser considerado inferior em qualidade a qualquer moleque adolescente ou pseudolíder fazendo careta em frente a uma câmera e defecando preconceitos como se estivesse de posse da mais alta verdade que a humanidade já foi capaz de produzir. E com a vantagem de não precisar de muito tempo e nem esforço para se fazer entender ou ser seguido por qualquer espectador, por mais iletrado ou estúpido que este possa ser.

Comentários

  1. Somos livres para buscar o conhecimento, mas muitos preferem permanecer na ignorância, ou pior, desconhecem essa condição, achando-se hábeis conhecedores, quanto na verdade são apenas reprodutores de preconceitos.

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    1. Infelizmente é fato. Mas a gente continua na nossa luta diária de fazer o pessoal reflita um pouco melhor sobre o que se passa ao redor.

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