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Narcisos Modernos


Somos obcecados pelo nosso próprio reflexo. Adoramos nos ver, nos admirar, principalmente através dos olhos alheios. O ser humano é o seu próprio assunto favorito e as redes sociais ajudam a levar isso a um extremo até então impensável. Se antes só as figuras mais proeminentes conseguiam algum tipo de destaque perante o público, hoje em dia qualquer um pode ter os seus quinze minutos de fama se fizer algo relevante no momento oportuno.
Seguindo esse raciocínio, a grande massa se acotovela postando selfies de tudo o que faz e come, dos lugares onde vai e das ideias das quais compartilha, tudo na tentativa de dizer algo de si e de atrair algum tipo de atenção, mesmo que seja de críticos dos quais pretende se desvencilhar mediante os argumentos previamente estudados para tal ocasião.
A vida do cidadão comum é uma constante tentativa de fugir da massa, de atrair os olhares para si, muitas vezes chegando a pontos cada vez mais ousados. Prova disso são as recorrentes manifestações de preconceitos, defesa de ideias extremistas, exposição exagerada do corpo e outras tantas manifestações que se julgam capazes de causar algum retorno, seja em forma de likes ou comentários, compartilhamentos ou manifestações de desaprovação.
Quem não se mostra é esquecido, e ser esquecido é a pior das mortes. É a morte em vida. É estar presente e invisível ao mesmo tempo. É tortura demais para quem quer ser visto e reconhecido de alguma forma. Porém, como nosso espelho é o olhar do outro, tentamos chamar a sua atenção a qualquer custo, mesmo que para isso seja preciso chocar os seus olhos de alguma maneira.
Alguns conseguem em maior grau outros em menor. No entanto, assim como na mitologia grega, o final é sempre o mesmo: Narciso sempre acaba por se afogar no excesso de exposição, na contemplação ininterrupta de sua própria imagem ao ponto de se esquecer até mesmo de sua sobrevivência física. Ele é escravo da imagem que criou e a qual quer manter nos olhos daqueles que o observam. E para manter esses olhares abre mão até de si mesmo, numa tentativa final de que até mesmo sua morte possa representar um último espetáculo aos olhos dos espectadores. O espetáculo que poderá imortalizá-lo.
Mal sabe ele que os olhares são fugazes e que os espetáculos logo são substituídos por outros e outros. Todos os Narcisos morrem em vão afogados no espelho onde querem imortalizar suas imagens.

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