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Não somos especiais

Não, não somos especiais. Bem que gostaríamos de sê-lo. Toda a nossa existência e nossas relações intersubjetivas estão muito calcadas nessa pretensão. As pessoas não gostam de se imaginar como seres comuns, submetidos às leis e regras genéricas que se aplicam a todos ou, pelo menos, à maioria. Gostamos de nos sentir diferenciados, apartados da plebe, da massa e do vulgo.
Geralmente buscamos justificativas explícitas ou tácitas para demonstrar que não nos confundimos com o resto e que aquilo que rege suas vidas não deve se aplicar a nós. E quando nos sentimos tendo o que quer que seja em comum com a maioria lutamos ardentemente para escapar a essa condição. Gostamos de privilégios, de estar em evidência, de receber tratamento VIP e de usufruir daquilo que a maioria não dispõe.
No Brasil, principalmente, há uma cultura forte no sentido de crer que a regra só se aplica a quem não consegue de alguma forma fugir dela. As leis são para os que não podem escapar ao seu cumprimento. Nos sentimos na vantagem e importantes quando conseguimos burlar alguma norma e fazer aquilo que em tese é vedado aos comuns.
E mesmo no que se refere à própria segurança as pessoas preferem se colocar no lugar da exceção e nunca da regra. Beber e dirigir, praticar sexo sem a devida proteção ou se arriscar das mais variadas formas sempre encontram como justificativa termos como “não pega nada”, “comigo não vai acontecer” e outras nesse sentido, o que reforça a tese de que as pessoas nunca se colocam no lugar da regra, onde a tendência é que quem se coloca nessas condições está em elevado risco de sofrer as mais variadas consequências.
Há que se dizer e repetir: se coloque no âmbito da regra, a exceção é a minoria, a probabilidade maior é que você dê azar e tenha que suportar as consequências de suas atitudes temerárias!
Mas não, as pessoas insistem em se colocar na posição de especiais, de exceção, odeiam aos comuns mais do que tudo e cultivam as regras e leis não porque compreendam o seu papel numa sociedade justa e igualitária, mas sim como um marco divisório entre aqueles que podem ou não se dar o luxo de agir da maneira como querem, independentemente das imposições legais e sociais. Gostamos de burlar e transgredir, isso nos faz sentirmo-nos melhores e superiores. E todas as nossas atitudes, mesmo aquelas que parecem mais nobres sempre atuam de modo a nos fazer com que nos sintamos mais elevados e pertencentes a uma casta superior, ainda que por associação a algo maior como uma entidade sobrenatural ou uma instituição da qual almejamos partilhar o poder e a influência.
Mesmo na religião é interessante os slogans do tipo “não sou dono do mundo, mas sou filho do dono”, ou seja não mando nisso aqui, mas sou chegado da chefia, portanto sou importante também, mesmo que por tabela. Trabalho na maior empresa deste ramo, portanto também sou importante, ainda que apenas uma engrenagem na estrutura toda e partícula quase invisível nessa gigantesca máquina.
A satisfação pessoal e a busca de destaque e privilégios é de saltar aos olhos. Sonhamos e tecemos discursos a respeito de um mundo melhor, porém um mundo moldado com uma separação sempre nítida ou, pelo menos, difusa mas existente, entre nós e o resto. Um mundo que seja aprazível o suficiente e sem muitos sobressaltos, contudo sem deixar de nos oferecer uma demonstração de que nosso ego está devidamente preservado da interferência dos comuns, aqueles que existem única e exclusivamente para reafirmar o quanto somos melhores.
Não, não somos especiais. E poderíamos realizar coisas melhores e que poderiam nos conduzir a uma vida muito melhor para todos os que nessa terra habitam se nos colocássemos no patamar de iguais, de companheiros que necessitam se submeter às mesmas regras e pleitear os mesmos direitos. Um lugar onde qualquer afronta a um desvalido seria um açoite em toda a malha social, e não um fato que só tem relevância se nos atinge de forma direta ou indireta.

Enquanto não fizermos realmente da igualdade e da justiça mais do que meros discursos vazios, continuaremos sendo o que sempre fomos: uma nação de fachada, com instituições que funcionam de maneiras diferentes para cada público atendido e privilegiando alguns em detrimento de muitos, enquanto ostenta a bandeira da “res publica”. As instâncias superiores deseducam os cidadãos, os cidadãos em geral refletem em suas cotidianas versões mais simplificadas da corrupção que vemos nas esferas superiores, e a solução não parece vir de um lado e nem do outro.

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